Estacionava o carro em uma rua de Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. Acabava de resgatar uma amiga motorista que teve a saia enroscada no pedal do freio, perdeu o controle do veículo e bateu contra uma árvore. O acidente foi leve, mas o carro dela não andava e teve que ser rebocado por um guincho. Fui com um amigo buscá-la e depois retornaríamos para continuar a confraternização de uma turma que se conheceu no colégio.
Depois do resgate, de volta a Higienópolis, descíamos do Fiat Palio quando dois homens subiram a rua e anunciaram o assalto. Um deles me abordou, sacou uma arma e começou a gritar “passa tudo, passa tudo”. O outro deu a volta no carro, e abordou minha amiga, que desembarcava pelo lado do passageiro. O terceiro amigo ainda estava no banco de trás. Ela conta que o assaltante mandou os dois voltarem para dentro do carro, na tentativa de um seqüestro relâmpago.
O ladrão que me abordava gesticulava de arma em punho, mas olhava para o outro lado do carro, talvez para dar “cobertura” ao companheiro desarmado.
Não reagi. Dizia “calma, calma”, mas ele gesticulava com a arma e só dizia “passa tudo, passa tudo”. Deixei a carteira e a chave no banco do carro e fui me afastando. PÁ! Barulho seco. Nunca tinha ouvido, mas era um tiro e tinha sido disparado a um metro de distância de mim. Não senti nada, mas a adrenalina a mil e o instinto de preservação me colocaram em posição fetal.
De cócoras ao lado do carro, com as mão sobre os ouvidos, a vida passou inteira na minha cabeça. Passa sim, é verdade. Passado, presente e futuro, tudo junto, fluido, rápido e eterno. Um segundo, um minuto ou uma hora depois, não sei, começava a voltar à Terra. Levantei, senti braços, pernas e coração batendo e pensei “estou vivo, não morri”.
Os dois ladrões, logo depois do disparo, saíram correndo. Não levaram nada. Me abaixei para pegar a carteira e a chave do carro que havia deixado sobre o banco, quando senti algo escorrendo no pescoço. Os dedos roçaram o buraco na pele. Não era fundo, mas era um buraco. Não sentia nada. Instinto: “Tomei um tiro, vamos para o hospital”. Minha amiga, também em estado de choque, saiu correndo e foi buscar ajuda no apartamento onde iríamos encontrar os outros. O amigo que estava no banco de trás, lá ficou, imóvel, estático. Instinto.
Outra amiga desceu, tomou as chaves da minha mão e me colocou no banco do passageiro. Seguimos para o Hospital das Clínicas. Eu segurava uma blusa para estancar o sangue. Não sabia ainda qual a gravidade do ferimento, mas imaginei que nenhuma função vital tinha sido afetada. Apesar da adrenalina, que segura muita gente de pé em situações críticas, já havia passado um bom tempo e eu continuava vivo e minimamente lúcido.
Hospital, maca, roupas rasgadas e imobilização para não movimentar o pescoço, médicos e enfermeiras circulando ao redor. A adrenalina já tinha baixado, veio a dor: um médico limpava o ferimento com iodo. Sentia o algodão dentro do meu corpo, aquelas luzes de hospital, aquele cheiro de éter… Radiografia, vacina anti-tetânica e depois virei atração turística na maca. Plantão médico em pronto socorro é assim mesmo: um monte de médicos e enfermeiros em residência, ávidos para conhecer e estudar os casos que chegam. Dessa vez eu era o rato branco do laboratório.
– Um FAF nessa região do corpo… meu caro, você tem sorte de estar vivo, 90% dos casos que entram aqui com FAF desse jeito saem ao menos paraplégicos.
– Sério?
– Sério… Você nasceu de novo, hein?
– Pois é, e semana que vem é meu aniversário.
– Nossa, então tem que comemorar duas vezes.
FAF era o Ferimento a Arma de Fogo do qual eu tinha sido vítima a pouco mais de um metro de distância. Foi de raspão, do lado direito do pescoço.
– Sorte sua que foi desse lado garoto: do lado esquerdo fica a jugular e tiro ali faz jorrar um monte de sangue.
Nenhum órgão vital atingido, nenhum osso, nenhum nervo. Apenas uma cicatriz e uma falha na barba depois de alguns anos.
Dirigi automóveis dos 18 aos 24 anos. Em diferentes graus de perigo, fui assaltado pelo menos 4 vezes. Somados aos furtos de toca-fitas e pequenas colisões, a estatística deve chegar a 10 “incidentes”. Todos resultaram em perdas econômicas e alguns trouxeram risco de vida. Sobrevivi.
Vendi o carro há 4 anos. Com o dinheiro, viajei para o exterior e meses depois comprei uma bicicleta. Não fui assaltado nenhuma vez desde então. Continuo a circular pela cidade nos mais diversos horários do dia e da noite, a pé, de ônibus, metrô ou bicicleta.
A maior parte dos paulistanos tem a ilusão de estar mais seguro dentro de um carro do que andando a pé. Acham que as ruas são perigosas e vivem com medo, de vidros fechados e, se possível, blindados. Ironicamente, boa parte deles já foi assaltado, sequestrado ou sofreu outro tipo de violência por causa do veículo.
É claro que os assaltos em ônibus ou calçadas também acontecem, como acontecem também em mansões e condomínios super-protegidos com esquemas paranóicos de segurança ou em casinhas de classe média baixa. Mas em um país cuja distribuição de renda só é pior do que em Serra Leoa, é óbvio que os milhares de Reais sobre quatro rodas chamam atenção, ou melhor, atraem criminosos.
A solução para a violência urbana passa pela distribuição da riqueza, pelo investimento em educação, moradia e saúde, pela redução na corrupção e também pelo investimento em segurança pública. Resgatar as ruas e transformá-las em ambientes seguros e agradáveis não é algo que possa ser feito de dentro de um carro blindado. Soluções privadas vendidas como panacéia contra a criminalidade não são capazes de solucionar problemas públicos, que exigem, é claro, soluções coletivas.
Como diz o sábio Rogério Belda no vídeo Sociedade do Automóvel, “ao segregar os habitantes em locais onde se acessa por automóvel e a rua passa a ser inóspita pelo tráfego e pela poluição, nós estamos abandonando a cidade e deixando que ela seja ocupada exatamente por aqueles que não são cidadãos”.
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