Washington (EUA), 1937
Há exatamente um século, os primeiros Ford T começavam a soltar fuligem, gases e partículas tóxicas nas ruas dos EUA. O primeiro “carro do povo” da história humana foi oficialmente concluído em 27 de setembro de 1908, mas as primeiras unidades só foram vendidas em 1 de outubro daquele ano.
Apelidado no Brasil de “Ford bigode”, o modelo produzido inicialmente em Detroit pode ser considerado não apenas um marco na história da hegemonia do automóvel sobre as cidades, mas também o início de uma das maiores falácias do capitalismo moderno: o mito de que todos podem (ou devem) ter um carro.
A grande inovação do Ford T não aconteceu no interior do bólido, na aerodinâmica, na velocidade máxima alcançada ou no consumo de combustível. Aliás, o Ford T gastava um litro de gasolina a cada 7 km, média muito parecida com a dos Stupid User Vehicles que destroem as cidades contemporâneas 100 anos depois.
A “revolução” do Ford T aconteceu dentro das fábricas. Foi com este modelo que a empresa de Henry Ford consolidou o sistema de produção que marcaria o século XX: a linha de montagem.
Usando a racionalidade capitalista da época, Ford descobriu que a produtividade de sua indústria seria alavancada se os operários permanecessem parados enquanto uma esteira movimentava o produto pelos diversos setores da fábrica. Se antes um mesmo operário montava o chassi, instalava a lanterna e colocava o estofamento, na linha de produção fordista cada operário era responsável por uma única função ou estágio da produção.
A divisão de trabalhos complexos (a produção de um carro) em diversos estágios simples (o apertar de um parafuso) permitiu a utilização de mão-de-obra menos qualificada e, principalmente, o aumento exponencial da produção e dos lucros da empresa.
O conceito da linha de montagem, junto com outras práticas capitalistas do início do século passado, foi chamado de “fordismo”, servindo como base para toda a indústria durante o século XX. Serviu também de inspiração para Charles Chaplin no clássico “Tempos modernos”, que conta a história de um angustiado “apertador de parafusos” em busca da felicidade para além das engrenagens.
Para enteder melhor o impacto da linha de produção: em 1913, a Ford tinha 13 mil empregados e produziu cerca de 260 mil carros. No mesmo ano, os 65 mil empregados das demais fábricas de automóveis produziram 286 mil unidades. Ou seja, com 5 vezes menos operários, a linha de montagem fordista garantia a mesma produção que os concorrentes.
Com a redução da folha de pagamento e o aumento da produção, a Ford pôde vender carros mais baratos que a concorrência e consolidou seu modelo como o primeiro carro “popular” da história, atingindo a marca de 15 milhões de unidades vendidas entre 1908 e 1927. Ou seja, em 19 anos a Ford colocou pouco menos do que três frotas paulistanas de 2008 para competir com bondes, trens, pedestres, ciclistas, praças e áreas de convivência. Não é preciso dizer quem venceu a disputa ao final do século XX.
A racionalidade fordista daquele início de século XX, tão eficiente para aumentar lucro e produção, só não contemplava uma variável: a finitude dos recursos. E não se trata apenas de combustíveis fósseis, aço ou ar limpo, mas também (e principalmente) de um recurso que se tornou cada vez mais precioso à medida em que a humanidade abandonou o campo e passou a viver majoritariamente em cidades: o espaço.
Números e lucros são infinitos. A submissão humana a trabalhos degradantes ou a desesperada luta pela sobrevivência também provaram ser bastante elásticas ao longo dos séculos. Mas a falácia fordista não considerou que é absolutamente impossível cada ser humano adulto possuir um automóvel, simplesmente porque não existe espaço para que todos estes carros sejam acomodados junto com as pessoas (isso para não falar dos recursos para produzir e alimentar a máquina).
A consolidação do automóvel como o símbolo maior do Ocidente fez com que boa parte dos países e cidades passassem boa parte do século XX em uma insana e degradante corrida em busca de recursos, idéias e espaço (muito espaço) para acomodar e alimentar os carros.
“Pelo menos ele dirige um Prius” / contra-publicidade encontrada por aí
O automóvel foi, sem dúvida, uma das principais invenções do século XX. No entanto, depois de 100 anos de “popularização”, o impacto negativo também é inquestionável.
No momento em que a idéia de um carro por pessoa começa a cair por terra, surgem novas falácias para manter a hegemonia do ultrapassado automóvel.
Plantio de árvores para compensar as emissões de carbono das máquinas de uma tonelada que levam 70kg de gente, carros elétricos (como se a energia elétrica não gerasse impacto para ser produzida), programas de carona (afinal, para que serve o transporte público?), e um bombardeio de comerciais que associam automóveis à natureza. Em inglês, a tática é chamada de “greenwashing”, ou “lavar de verde”.
A lógica das ações de “greenwashing” é falaciosa, tão insustentável quanto a idéia fordista de “um automóvel por pessoa”.
Quantos bilhões de árvores deveriam ser plantadas para “neutralizar” a emissão de carbono da frota motorizada?
Mesmo que todos os usuários de automóveis só andassem em carros com quatro pessoas dentro (situação inimaginável), será que a redução de todo o impacto provocado pelos automóveis para 25% do que é hoje tornaria o automóvel “sustentável”?
Será que 1/4 de SUV pode ser chamado de “sustentável”?
E o que faríamos se o indíce de possuidores de automóveis em São Paulo dobrasse para 60% da população, seguindo a tendência proposta por Ford?
Quantas usinas de Itaipu seriam necessárias para alimentar uma frota inteira de carros elétricos?
Se o automóvel (assim como inúmeras invenções do século XX) trouxe uma porção de melhoras na condição de vida das pessoas, o século XXI deveria começar com uma profunda e sincera análise dos impactos negativos destas inveções.
A principal diferença é que, ao contrário de 1908, não teremos mais 100 anos de existência para descobrir que a falácia fordista e as ações de “greenwashing” têm como principal objetivo a multiplicação dos lucros, a manutenção do status-quo e a aniquilação de toda e qualquer crítica, e não o bem-estar da população ou o equilíbrio da vida e do planeta.
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