(foto: Mario Amaya)
Este texto estava entre os rascunhos para o blog desde o primeiro dia de 2009. As fotos, com exceção da primeira e da última, foram tiradas nas últimas semanas do ano passado.
A “comunidade visível” do título era a verbalização de um sentimento exacerbado no final de 2008, depois de passar a virada do ano em cima de uma bicicleta, estourando champanhe no meio de uma avenida, viajando maneira fluida pelas ruas de São Paulo para ir de festa em festa e, principalmente, transformando o próprio caminho em parte fundamental da experiência.
O contato não-mediado entre os seres humanos ou destes com o espaço habitado se mostrava concreto, potente e delicioso.
Na madrugada de 14 de janeiro, embarquei para Belém (PA). O trabalho no Fórum Social Mundial e a disposição de aproveitar a experiência na capital paraense fizeram minha cabeça estipular que este seria o último texto antes de uma pausa no blog.
A idéia era narrar a experiência do final de ano para ilustrar uma espécie de retrospectiva da acensão de um movimento silencioso que reivindica e exerce novos paradigmas de convivência e organização das atividades humanas. Experiências contemporâneas, mas não necessariamente novas, realizadas ao longo dos últimos anos por ciclistas e outros atores urbanos.
Esta comunidade do título (por diversas razões, incluindo a derrocada inevitável dos modelos vigentes) ganhou força, voz e vida nesta segunda metade da década de dez, apontando um grande NÃO e muitos SIMs a cada giro do pedal, a cada panfleto distribuído, a cada conversa direta com motoristas, pedestres e ciclistas, a cada sorriso arrancado ou emitido, a cada metro quadrado do espaço urbano que aparecia livre do barulho, da fumaça e da agressividade, sendo substituído por outras formas de vida em coletivo.
(fotos: luddista / exceto quando citado)
Na tarde daquele mesmo 14 de janeiro, depois de passar a manhã entre um avião, dois táxis e uma negociação infindável com um corretor que tentava tirar mais alguns trocados em cima do apartamento alugado para a temporada, uma voz em prantos ao telefone anunciava o brutal e estúpido atropelamento de alguém que duas semanas antes pedalava no seleto grupo da inesquecível virada de ano.
“Eu não queria perder ninguém”, dizia o amigo em São Paulo, informando que outros estavam a caminho da avenida Paulista para entender, chorar ou protestar. Márcia estava morta, debaixo de um ônibus, em uma tarde chuvosa na capital.
Sentei e chorei por quinze minutos, compulsivamente. Pela segunda vez na minha vida, o tempo era batido em um liquidificador, misturado com certezas, utopias e sentimentos e jogado de volta goela abaixo até as profundezas da alma.
A morte é o que dá fundamento e sentido à vida, escreveu um amigo dias depois. Dá fundamento, mas por alguns instantes, horas ou dias, retira completamente as bases daqueles que permanecem vivos. Levei minha bicicleta até Belém, mas não pedalei nos primeiros dias. Soube que muitos também não pedalaram por aqui.
Conheci pouco a Márcia, como conheço pouco boa parte das 300, 400 ou talvez 1000, 1500 pessoas que pedalam ou pedalaram nas bicicletadas em São Paulo. Pouco conheço também os outros milhares que fazem parte desta rede amorfa e virtual de opiniões, imagens, emoções e idéias, estruturada em blogs, sites, panfletos, conversas de bar, reuniões e principalmente nas ruas.
Das amizades surgidas nos encontros mensais, Márcia estava entre as mais recentes. Pedalamos juntos em alguns dos momentos mágicos do final de ano, que tiveram como pano de fundo a beleza da cidade com menos carros e mais bicicletas.
Vivenciamos a ascensão e queda do apocalipse natalino em 2008, quando o desespero motorizado-consumista toma conta dos paulistanos, levando milhões de carros às ruas para transportar pessoas que compram, comem, bebem, congestionam, matam e produzem lixo (muito lixo) para celebrar a paz e a união entre os povos. Quando parece que tudo vai explodir, os paulistanos fogem da cidade em direção às praias e montanhas, onde passam o reveillon e para onde levam o trânsito, o lixo e as mortes “acidentais”.
Como outros milhões de paulistanos, Márcia ficou em São Paulo. Aproveitou pique-niques, passeios, praças, parques, conversas e bares na cidade vazia. Celebrou o espaço público pelo qual boa parte dos paulistanos sente medo ou repulsa, preferindo o ar (e a vida) condicionado(a) dos bunkers assépticos que se espalham por todos os lados, com seus manobristas na porta e cameras de vigilância em alerta.
Usar o espaço urbano: ato simples de amor à cidade e talvez uma das formas mais poderosas de resistência à internacional do terror, o bombardeio do “ter é ser” propagado por mercados e mercadores de sonhos privados.
Mesmo antes do atropelamento que ganhou manchetes de jornais e destaque na televisão, a comunidade dos que rejeitam o medo e propagam a convivência já se fazia visível.
A cada mês uma massa cada vez maior ocupava as ruas, distribuia panfletos, conversava, promovia atividades e, principalmente, mostrava na prática e para quem quisesse ver que as ruas são de todos (e podem ser muito mais alegres e pacíficas).
A cada dia os muitos “eus” multiplicavam os saberes, produziam imagens, reportavam fatos, presionavam autoridades, estreitavam os laços e empurravam as transformações e se transformavam em outros tantos “eus”.
Invisíveis aos olhos do grande público televisivo, “correndo por fora” nas discussões sobre mobilidade urbana (no jargão midiático, o “caos no trânsito”), esta comunidade fez de sua visibilidade um exercício cotidiano. Prática que consiste não apenas em desenvolver táticas para ser visto pelo motorista apressado escondido pelos vidros escuros, mas também para ser notado como parte intrínseca do cenário urbano e político da metrópole.
Andar de bicicleta é um ato solitário. Andar de bicicleta em uma cidade dominada (também culturalmente) pelos motores, além de solitário é algo excêntrico, exótico… Reconhecer que “como eu existem muitos” e poder trocar experiências, dificuldades e prazeres foi um passo fundamental nessa construção lenta, porém constante e permanente da “comunidade visível”.
Do “eu” passamos a ser “nós”.
Nossas experiências reais de deslocamento no espaço urbano se transformavam em conversas, blogs, fotos, mensagens e até matérias de jornal, provocando reflexões e ações que transcendiam a mera luta pela sobrevivência ou a crença em paliativos e milagres.
Nosso exercício inevitável é o de pensar a cada metro sobre o abandono das praças, sobre a agressividade no trânsito, sobre a degradação da cidade, a poluição, a guerra, o consumismo, o lixo ou falta de estruturas e de respeito para os deslocamentos “alternativos”. Nós não fechamos o vidro, ligamos o ar condicionado, o som e dizemos “não tenho nada a ver com isso”.
Não é fácil definir a experiência dos últimos anos, nem tampouco medir os resultados imediatos das ações desta comunidade que se encontra apenas uma vez por mês, mas que age todos os dias sobre a realidade.
Mais difícil ainda é definir algo que não está previsto na atual lógica de compartimentação e funcionalidade do conhecimento. “Como assim vocês são ciclistas e não são esportistas? Andam de bicicleta e não é por falta de grana? E o líder, quem é o líder disso tudo? Como assim vocês criticam ciclovias? Então quer dizer que a Bicicletada não tem um objetivo?”.
“Cidadãos ativos”, talvez esta seja a única e mais simples definição que consigo retirar do rótulo “cicloativista” colado pela era da fragmentação funcional.
Márcia era uma cicloativista. Não apenas porque pedalava ou defendia melhores condições para quem usa bicicleta, mas principalmente porque exercia um dos princípios políticos mais elementares, porém esquecido nos tempos de consumidores-telespectadores: a vida em sociedade baseada na participação, em valores de convivência, livre experssão e construção coletiva do bem-comum.
(foto: Mario Amaya)
Entendi depois que Marte, deus da guerra, era a inspiração para o nome daquela cidadã ativa que tombou em uma tarde chuvosa na batalha cotidiana contra a invisibilidade. Se uma das obsessões dos vivos é buscar explicações para a morte, que a passagem de Márcia signifique mais um momento de reflexão em busca de outras cidades possíveis.
Ciclista Márcia, presente!
de trás para frente I – 12.jan.2009
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