Momento ciclístico-literário. Reproduzo abaixo o belo texto do colega de pedalada André Maleronka (www.transito.zip.net).
“Vou pedalando.
O sol queima a Rua Itaboca, me dá firme na cabeça, os bondes comem os trilhos, é um barulhão que estremece até as casas; os trens da Sorocabana e da Santos a Jundiaí vão se repetindo lá em cima do viaduto da Alameda Nothmann, carregados e feios. Gente se pendura até nas portas. Vou pedalando… Sei lá por que gosto. Sei que gosto. Atravesso essas ruas de peito aberto, rasgando bairros inteirinhos, numa chispa, que vou largando tudo pra trás – homens, casas, ruas. Esse vento na cara… Agora vou indo lá pro Pacaembu. Vou pegar a Nothmann, subir, desembocar direto na Barra Funda, ô puxada sentida! É me curvar sobre o guidão, teimar no pedal, enfiar a cara. Depois, ganho a avenida larga e, numa flechada, alcanço o estádio.”
O escritor João Antonio (nascido em São Paulo em 1937 e falecido no Rio de Janeiro em 1996), uma das maiores pontes entre o cotidiano das ruas e o papel impresso, falava em seu conto “Paulinho Perna Torta” de uma São Paulo que aparentemente não existe mais. Tanto os antigos modos da malandragem dos salões de bilhar da Lapa e dos inferninhos do Bom Retiro deram lugar à violência nos centros e nas periferias quanto os bondes (que já eram lotados) foram substituídos no dia-a-dia por um sistema de ônibus, trens e metrôs deficiente, amparado pela ampla penetração dos carros particulares – uma equação bem mais violenta e suja.
Gigantesca e inchada, prestes a se tornar a segunda cidade mais populosa do planeta, o transporte na região metropolitana não funciona legal: são mais de 17 milhões de habitantes, 7 milhões de carros particulares congestionando as vias todos os dias (na maioria das vezes só com o motorista dentro), poucos quilômetros de metrô e linhas de ônibus quase sempre lotadas. Metade das residências daqui acumula pelo menos um carango, já que muitas vezes esse é o único jeito de chegar onde se precisa. Se de dia já é difícil, imagina na balada – nem tem ônibus a noite inteira. Assim como pra ir trampar você faz um extrinha camelando na lentidão do tráfego ou se acotovelando nos transportes públicos, à noite você, ou quem estiver te levando de carona, vai ter que escolher entre dirigir e chapar. Siniiiiistro, Jamanta!
É aí que entram as bicicletas. Se você vai percorrer cerca de 10 quilômetros, que é mais ou menos a média de deslocamento diário das pessoas pra chegar ao trampo, escola ou balada, já está mais do que provado que indo de bike você chega antes. Nesses casos – ou mesmo pra distâncias maiores – poder combinar umas pedaladas com transporte público seria lindo. Ninguém ia precisar sair de carro mais, mas o esquema de locomoção em São Paulo é tão legal que você é proibido de entrar no trem, no metrô ou no busão levando sua bicicleta, pura e simplesmente, como demonstra um recente comercial da Caloi estrelado pelo VJ Edgard. Fora a estação de trens de Mauá (onde ficam estacionadas cerca de 1.700 bicicletas diariamente!), não há bicicletários. Então, pra embarcar, você teria que desmontar e empacotar (!!) sua magrela. Apesar disso, nos últimos 10 anos, o número de ciclistas diários em São Paulo praticamente dobrou. São pelo menos 400 mil bicicletas fazendo a mesma função dos carros particulares, de um jeito bem mais democrático, limpo e aproveitando bem melhor a paisagem que essa cidade ainda tem pra oferecer.
Você poderia dizer “mas eu sou louco de sair pedalando e respirar toda essa poluição?”. Na real, é bem melhor do que estar trancado dentro de um carro, que além de responsável por 70% da poluição do ar daqui, deixa você bem na altura pra inalar a podreira dele e dos outros, que vai se concentrar dentro dos veículos. No alto, de bike, na mais perfeita união entre homem e máquina (segundo os alemães do Kraftwerk), você respira melhor, além de poder observar de verdade o lugar onde você vive, fazendo um exercício da hora.
Claro, existem algumas regras e precauções pra você fazer seu rolê numa boa. Pelo Novo Código de Trânsito, a bicicleta tem preferência na pista, isto é, os carros têm que deixar você em paz, guardando um metro e meio de distância ao te ultrapassarem. Um capacete, faróis e refletores também te garantem. Encarar o mar de carros é uma tarefa que exige treinamento e atenção, mas isso em São Paulo é fácil. As chuvas quase diárias dão um belo adianto na dispersão dos poluentes, e essa pode ser a melhor desculpa pra você desencavar aquela bicicleta empoeirando na garagem e começar participando de algum dos inúmeros passeios que existem por aqui. Tem quase todos os dias e existem muitos grupos organizados. É uma ótima pra saber como anda seu condicionamento físico e adquirir segurança pra transitar. Além disso, você vai pedalar com gente experiente e a fim de te ensinar o que for preciso.
Desses todos, talvez o mais interessante seja a Bicicletada. Organizados através de uma lista de discussão por e-mail, o grupo Bicicletada faz manifestações mensais em que ciclistas ocupam as ruas pra celebrar o movimento em duas rodas e mostrar que existem outras opções além de um consórcio na sua vida.
André Maleronka
(originalmente publicado na revista Pista n. 11, janeiro de 2005)
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