Plante miséria, colha violência

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(foto: David Henry/www.davidphenry.com)

This morning I woke up in a curfew;
(Nesta manhã acordei sob toque de recolher;)
O God, I was a prisoner, too – yeah!
(Oh Deus, eu era um prisioneiro também)
Could not recognize the faces standing over me;
(Não podia reconhecer os rostos à minha frente)
They were all dressed in uniforms of brutality.
(eles estavam vestidos em uniformes de brutalidade.)

How many rivers do we have to cross,
(Quantos rios a gente tem que cruzar)
Before we can talk to the boss?
(antes de conseguirmos falar com o chefe?)
All that we got, it seems we have lost;
(Tudo que conseguimos parece ter se perdido)
We must have really paid the cost.
(devíamos ter pago o preço)

That’s why we gonna be
(E é por isso que estaremos)
Burnin’ and a-lootin’ tonight;
(queimando e saqueando esta noite)
Say we gonna burn and loot
(Iremos queimar e saquear)
Burnin’ and a-lootin’ tonight;
(Queimando e saqueando esta noite;)
Burnin’ all pollution tonight;
(queimando toda a poluição esta noite;)
Burnin’ all illusion tonight.
(queimando toda a ilusão esta noite)

A arte geralmente diz muito mais sobre a realidade do que o telejornal da noite ou o jornalão da manhã. “Burnin´ and lootin´”, música de Bob Marley, foi usada na belíssima cena de abertura do filme “O Ódio (La Haine)”. Em 1995, o diretor Mathieu Kassovitz já destrinchava o cotidiano dos subúrbios de Paris com mais vigor do que a CNN, a Reuters ou as reprodutoras de conteúdo tupiniquins (salve raríssimas excessões). Filmaço, vale a pena procurar na locadora.

Spike Lee, em 1989, contava a história da difícil convivência nos subúrbios de Nova Iorque no também belíssimo “Faça a coisa certa“. Lars Von Trier foi mais fundo com o recente Manderlay, que estréia nos cinemas brasileiros nesta semana. Miséria americana, miséria francesa, miséria humana: parte indissociável do capitalismo.

O mais estarrecedor é a cobertura burra e sanguinária da mídia. Vale mais a imagem de um carro incendiado ou da tropa de choque descendo a borracha na multidão do que uma análise mais profunda dos fatos ou a busca das razões para tentar explicar o caos. “Vandalismo”, “violência” e “confronto” aparecem muito mais do que “desigualdade”, “racismo”, “exclusão”. Foi assim no massacre dos 500 anos, quando FHC e ACM desceram a borracha em índios, estudantes e cidadãos que protestavam contra a fanfarronada pra gringo ver em Porto Seguro. Foi assim em Seatle, Gênova e Praga durante os protestos altermundistas.

Foi assim também em Mar del Plata na última sexta-feira. A grande mídia reportou que os manifestantes argentinos tinham depredado e incendiado o comérico local em protesto contra a visita do terrorista Bush. Parecia que a padaria do seu Joaquim tinha sido vítima de uma horda de baderneiros. Uma análise um pouco menos rasa das imagens deixava claro os alvos dos incendiários: a Telefônica, joalherias, empresas de celulares e bancos, responsáveis simbólicos ou de fato pela miséria argentina dos anos 90, quando o traficante de armas Menem privatizou o que restava do país.

Em Paris, nos morros cariocas ou na periferia paulistana não é diferente: vale mais o escândalo policialesco que choca a audiência e desperta instintos de ódio, medo e xenofobia do que a busca pelas raízes ou, ao menos, a cobertura decente do que está acontecendo. Dizer que “manifestantes entraram em confronto com a polícia” ou que “vândalos incendiaram carros” como se anuncia a previsão do tempo ou os gols da rodada só alimenta a burrice generalizada. Como disse uma sábia amiga, talvez fosse melhor que a televisão deixasse de lado essa pretensão de mostrar “a verdade” nos telejornais e se dedicasse apenas à cultura e ao entretenimento.

Não defendo de forma alguma a violência, nem a justifico simplesmente pela miséria, por posições políticas, pelo racismo e pela xenofobia. No entanto, descartar a íntima ligação entre esses fatores e fazer das relações sociais complexas um espetáculo de sangue pelo sangue é um crime contra a inteligência e uma afronta aos miseráveis deste planeta. Talvez seja por isso também que os argelinos, marroquinos, tunisianos e cidadãos de outras ex-colônias francesas estejam queimando dezenas de carros a cada noite.

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