Você com um carro na mão é um bicho feroz


(cena do desenho Motormania, de 1950)

Rua Tutóia, cruzamento com a avenida Brigadeiro Luiz Antônio, 18h30. Pedalo devagar pois o semáforo à frente está vermelho e não costumo ultrapassar carros que vão me ultrapassar depois. Uma buzina raivosa é acionada longamente por um carro atrás de mim. Olho, aponto o sinal vermelho a menos de 20 metros e vejo dentro do veículo uma mulher gesticulando euforicamente. Acho que ela também estava gritando, mas não pude ouvir já que os vidros do veículo estavam fechados.

Abri espaço, ela emparelhou ao meu lado. Meu pecado: bati no vidro do carro, apontei de novo o sinal vermelho e gesticulei dizendo que queria falar algo. Em São Paulo, você pode xingar a mãe e passar a mão na bunda do pai, mas não ouse encostar no sagrado automóvel. A mulher parou o carro no meio da rua e desceu gritando:

– Você tá louco de bater no vidro do meu carro! Tá louco, é?! Sai da frente, seu filho da puta, vai pra calçada!

– Mas minha senhora, não viu que o farol estava fechado? Por que buzinou se ia parar logo ali?

A mulher, uns 30 anos, aparência de 40, veio em minha direção. Me afastei com a bicicleta, dando uma volta ao redor do carro.

– Seu bicha! Com medo de mulher? Filho da puta!

– Minha senhora, não quero brigar, só queria conversar, mas a senhora está muito estressada. Eu sei, o trânsito faz muito mal mesmo, é angustiante andar e parar a cada 50 metros… Já pensou em pedalar ou andar à pé? Faz bem, deixa a gente feliz, alegre, tranqüilo…

Ela continuou xingando, totalmente alterada. O motorista do veículo que estava atrás passou pelo lado e disse “Meu, sai fora, essa mulher não tá te ouvindo, ela tá completamente louca, não perde o seu tempo”.

– Ele tem razão: divirta-se com o congestionamento, aproveite o trânsito e a solidão…

Me afastei. Ela entrou no carro. Continuei meu trajeto e, como era de se esperar, no semáforo seguinte lá estava ela, parada no congestionamento. Parei ao lado dela, acenei, apontei para o trânsito e sorri para os vidros escuros. E não é que a louca saiu do carro de novo? Transtornada, ela apontou o telefone celular para mim e gritou:

– Vai embora, seu filho da puta, se não eu chamo meu marido e digo que você está me seguindo!

– A senhora faça o que quiser, mas tente relaxar, experimente pegar uma bicicleta pois me parece que o trânsito está te fazendo muito mal… Bom congestionamento!

Ela continuou gritando sozinha, eu segui em frente. O barraco chamou a atenção de um pedestre que olhava os jornais na banca da esquina. Comentei o ocorrido e ele respondeu:

– Você conhece aquela música do Bezerra da Silva: “Você com uma arma na mão é um bicho feroz”? Pois é, aqui em São Paulo é só trocar “arma” por “carro”…

Me despedi do rapaz e segui dando risada da cena mais bizarra que eu já vi no trânsito: “eu chamo meu marido”… Pensei: se o terrível marido estiver de carro, terei muito tempo para escapar. Não parei de rir sozinho até chegar em casa. A coitada deve estar transtornada até agora, exalando bile, aumentando a úlcera, angustiada e sozinha na sua cela móvel.

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