Ossos do ofício

Quem era o paciente do carro estacionado na calçada desta clínica ortopédica?

Um pedestre que se recuperava de um atropelamento?

Uma vítima leve que torceu ou quebrou o pé em uma calçada esburacada?

Um cadeirante que “se arriscou” na rua pois a calçada era estreita?

Um idoso que ousou dar uma volta no bairro?

Um ciclista derrubado por um motorista apressado?

Alguém gravemente ferido em uma colisão automobilística porque o motorista do carro da frente usava engate, aquela peça usada pela maioria dos motoristas como arma contra arranhões na pintura do pára-choque que aumenta exponencialmente a nocividade das colisões traseiras?

O motorista do carro cinza talvez não tenha percebido que aquele espaço era uma calçada.

Ao ver a pintura “espertamente” verde do piso, que igualou o espaço público para pedestres ao espaço do terreno particular destinado ao estacionamento de carros, o motorista deve ter pensado, no máximo, que “ainda tinha espaço” para o pedestre passar.

Talvez os vidros escuros de seu carro em grau acima do permitido tenham dificultado ainda mais a distinção elementar entre público e privado. Ou talvez ele já tenha se esquecido que existem calçadas, idosos, cadeirantes, ciclistas, pedestres, crianças, bairros e praças, passando a acreditar que a cidade é feita apenas de avenidas, faróis, garagens, manobristas e do carro que vai à sua frente.


(reprodução: “Autoschreck”, Roland Schraut)

Uma situação parecida com a registrada em São Paulo foi a gota d’água para o alemão Michael Hartman. Ele, que já não era um “amante dos roncos de motores”, ficou absolutamente indignado quando uma BMW estacionada em cima da calçada (que era também ciclovia) provocou a morte de uma criança que seguia de bicicleta na garupa da mãe.

A pequena Silvia foi morta quando o motorista da BMW em local proibido abriu a porta do carro, acertando a roda traseira da bicicleta e jogando mãe e filha para o meio da rua. Uma van atingiu a bicicleta e matou a criança na hora.


(reprodução: “Autoschreck”, Roland Schraut)

Adepto da não-violência, Hartman começou contestar os abusos cotidianos com calma e inteligência. “Passo sobre carros, não por cima de seres humanos como eles fazem”.

Em outro trecho, Hartman demonstra a fúria automobilista quando o “troco” é dado na mesma moeda. Ao caminhar ou ficar parado no meio de ruas, desperta a ira dos motoristas, que buzinam e chegam a agredi-lo pois estava “atrapalhando a passagem”.

Vale lembrar que o filme se passa na Alemanha, em 1994. Ou seja, uma agressão física no filme deve ser equivalente a ser morto com um tiro na São Paulo deste início de século.

O vídeo Autoschreck, de Roland Schraut, conta a história da batalha de Hartman por ruas mais humanas. Disponível apenas em inglês.

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