Carro, veículo do passado


“ponha a diversão no meio das suas pernas”

texto: Fabio Veronesi
publicado originalmente no blog da Transporte Ativo

“A pessoa que passa andando na rua de bicicleta é alguém que está fazendo bem ao mundo e a si mesma. Com esforço próprio combate a poluição e o aquecimento global na prática, sem discursos panfletários, sem levantar bandeiras, sem querer impor nada a ninguém, ela está contribuindo para melhorar o ar que todos respiram hoje e o clima do planeta para as futuras gerações.

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Mas, atenção motoristas! isso não é uma declaração de guerra. Pelo contrário: é de paz! Porque a idéia é que todo mundo possa deixar seu carro em casa quando sentir vontade e possa andar de bicicleta sem colocar sua vida em risco. Também acredito, como ciclista, que nenhum motorista quer nos atropelar. Então o que há de errado? Por que isso, infelizmente, acontece diariamente? A resposta exige que paremos para pensar um pouco. A quem interessa uma política e uma cultura que prioriza as vias de transporte para veículos automotores? Qual será a influência da indústria automobilística nas decisões dos governos e conseqüente direcionamento de recursos para infraestrutura que atende a nossa necessidade de transporte? E no inconsciente coletivo das pessoas? Já parou para pensar que, desde que você começou a assistir televisão na sua vida, você vê quase todos os dias uma propaganda de carro? Que a idéia de que “quanto mais for feito pelo automóvel, melhor” é um consenso forçado pela mídia e pelas instituições financeiras, alegando que a economia do país irá parar se a indústria automobilística diminuir sua sempre crescente demanda de consumo?

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A bicicleta não atrapalha o automóvel na ocupação de espaço nas ruas e avenidas. Pelo contrário.
Lembrando que de uma forma ou de outra todos tem que se transportar, conclui-se que cada motorista que deixa seu carro em casa e sai de bicicleta abre espaço nas ruas, tanto quanto é a diferença entre o espaço que ocupa um automóvel e uma bicicleta. Se centenas, milhares de pessoas fizerem essa opção, o espaço aberto será enorme, muito maior do que aquele que se consegue gastando fortunas do dinheiro público com ampliações de avenidas e construção de elevados.

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A bicicleta é uma revolução social, econômica, política e ideológica possível aqui e agora! Quando vejo nas grandes avenidas das grandes metrópoles, centenas de automóveis indo na mesma direção, a grande maioria com apenas um ser humano dentro, com sua atenção tomada pela responsabilidade de dirigir, caminhando lado a lado com outros seres humanos hermeticamente isolados uns dos outros dentro de suas “caixinhas” móveis sem se comunicar, penso no quanto isso poderia ser diferente.

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Cerca de 85% da energia consumida por um automóvel é gasta para transportar a ele mesmo.

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Na bicicleta dependemos de energia própria, não há, portanto, concorrência entre as pessoas que buscam transportar-se, pelo contrário, ao nos unirmos com outros seres humanos ganhamos incentivo para ir mais longe. O automóvel depende de energia externa, limitada e não-renovável, o que gera concorrência entre os que dela dependem. O automóvel é um dos melhores símbolos físicos da ideologia capitalista. Os slogans de suas propagandas trabalham sempre com termos como mais potente, mais veloz, maior em sua categoria, mais econômico, mais bonito, mais robusto, mais confortável, etc., etc., etc.

A modernidade diminuiu o tempo de comunicação e de transporte. Criou-se uma falsa ilusão de que esse movimento tem que ser sempre crescente para ser melhor. Estamos nos entupindo com veículos velozes que não tem espaço para andar. Chegamos a um ponto em que um veículo menor em tamanho e velocidade, como a bicicleta, tem melhores condições de se locomover e gasta menos tempo.

Poucos sabem ou se lembram que o código brasileiro de trânsito, assim como a maioria das legislações sobre o trânsito no mundo todo, determina que o automóvel dê preferência à bicicleta nas ruas e avenidas. Ou que a distância mínima, prevista pela lei, para ultrapassar uma bicicleta é de 1,5 metros e caso não haja condições de ultrapassagem respeitando essa distância mínima, o automóvel deve aguardar, pois a bicicleta não pára o trânsito, ela é o próprio trânsito naquele momento.

Agora, que não se iludam os que querem começar a utilizar a bicicleta para transportar-se: vão entrar numa guerra! Uma guerra que já está sendo travada nas ruas e que deixa centenas de mortos e feridos todos os dias. Não uma guerra contra os motoristas e os automóveis (repito), mas uma guerra contra uma ideologia. Andar de bicicleta é lutar contra um sistema que associa respeito a posse e exibição. Lutar através de atitude própria, pela ação direta, cotidiana, pelo ato de pedalar em si, pela força da humildade num mundo de ostentação.

Como em toda guerra, a sobrevivência depende das estratégias que elaboramos. O ciclista deve se equipar com tudo que possa diminuir a possibilidade de acidentes e que esteja ao seu alcance providenciar: espelho retrovisor, reflexivos e iluminação pisca-pisca para noite, capacete, buzina, etc. Não adianta bater de frente com os automóveis, mas deve-se ocupar o espaço que é do ciclista, porque ele existe e é um direito seu ocupá-lo. O ciclista também paga os impostos que construíram e que fazem a manutenção da malha asfáltica.

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A luta do ciclista é contra a ideologia que dá prioridade máxima ao automóvel – a locomotiva histórica do sistema capitalista. Mas, apesar de estarmos lutando contra um sistema econômicosocial, são as pessoas, influenciadas pela educação e adaptação ao modo de pensar desse sistema que tomam as atitudes cotidianas que enfrentamos no trânsito. De certa forma, não existe esse tal “sistema”. Ou seja, ele existe através das atitudes das pessoas. A ideologia do sistema, o conjunto de idéias compartilhadas, é imposto pela educação e depois é mantido como verdade aceita através de muita propaganda. Mas… como tratam-se de atitudes pessoais, de individualidades representando o sistema, de seres humanos repetindo padrões de conduta, esse sistema pode ser modificado também por atitudes, pelo exemplo contrário ao estabelecido.

Os ciclistas que enfrentam hoje o trânsito das cidades são pioneiros abrindo o espaço para o futuro. Foi-se o tempo em que a rebeldia revolucionária era representada pela moto. Ciclismo é sinônimo de saúde e juventude, indiferentemente da idade. A melhor estratégia para essa luta é conseguir mostrar o quanto é bom andar de bicicleta. Criar uma irmandade entre todas as pessoas que andam de bicicleta. Ciclistas devem se cumprimentar quando se cruzam nas ruas, deixar extravazar o prazer que estão sentindo invadidos por endorfinas criadas pelo esforço físico e pelo andar numa velocidade em que se pode admirar a paisagem e as pessoas.

A revolução ciclista é lúdica! A bici
cleta é um brinquedo de criança que se transforma em prazer e opção de transporte para o adulto.

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Não são somente ciclovias que queremos porque não podemos e não precisamos esperar a boa vontade de governos que estão submissos à força econômica da indústria automobilística para iniciarmos nossa revolução cotidiana. Não precisamos!

Cerca de 20% da população tem a possibilidade de comprar e manter automóveis, mas 100% da população é afetada pelo direcionamento da arquitetura urbana para priorização do trânsito de automóveis e todos pagam os impostos que constroem as vias por onde eles transitam. A bicicleta é uma forma de democratizar a malha asfáltica, diminuir essa diferença.

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Transcendendo o conceito, o termo “Massa Crítica” ou “Critical Mass” dá, hoje, nome ao movimento mundial que busca unir a força de todos os ciclistas na formação de uma grande massa crítica (acrescendo ao significado: pessoas com opinião crítica sobre a situação gerada pelo consumo alucinante de petróleo) que está invadindo naturalmente as ruas do mundo inteiro. O movimento de formação da Massa Crítica é, até que enfim, a esperança de um mundo melhor construído com ações diretas.

O resgate do orgulho pessoal de estar fazendo algo concreto contra o sistema capitalista, mas sem gerar violência. Enfim, uma possibilidade real de revolução social se concretizando a cada revolução da roda de uma bicicleta. A opção possível de transformar a revolta contra o aquecimento global e a devastação consumista do nosso planeta em atitude, saúde e prazer.

A bicicleta é, sem dúvida, o veículo do séc. XXI. Nós só estamos no começo dessa história.”

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