Por razões jornalísticas, fui obrigado a adquirir a edição de 4 de abril. Tentei negociar com o jornaleiro a compra apenas do suplemento paulistano, mas ele não topou e tive que trazer para casa também a edição nacional, que foi direto para a reciclagem após uma rápida folheada no banheiro.
(bicicletada de fevereiro-sp)
30% dos paulistanos possuem carros e andam praticamente sozinhos dentro deles.
A reportagem da Veja apresenta essencialmente paliativos para manter o paradigma insustentável de privilégio ao transporte individual motorizado às custas de fortunas saídas dos cofres públicos e privados, da degradação urbana e de muitas vidas perdidas.
A revista não cita em nenhum momento a necessidade de reduzir o uso do automóvel, não fala sobre bicicletas nem coloca a realização de pequenos deslocamentos a pé como uma necessidade urbana.
Não escreve uma linha sequer sobre a restrição ao estacionamento de propriedades privadas em espaços públicos, nem sobre restrições de velocidade e circulação, a não ser pela punição do motorista que desrespeita o “bom” andamento do fluxo ou através de cobranças de taxas dos motoristas.
Reduzir a velocidade do fluxo é uma necessidade para que pessoas possam circular com segurança em bicicletas, a pé, em motos, ônibus e até em outros carros.
Limitar o fluxo em algumas áreas ajudaria a evitar “acidentes” e preservar espaços humanos de cultura, lazer, arte, convivência, diversão, política, comércio…
Proibir o estacionamento de veículos em algumas ruas aliviaria o tráfego, além de permitir a construção de ciclovias, ciclofaixas ou espaços preferenciais para os ônibus. Com a restrição de estacionamento, seria possível também aumentar o tamanho das congestionadas calçadas, permitindo ainda a alforria de cadeirantes, idosos e pessoas com dificuldade de locomoção.
Mas a revista não fala de nada disso e ainda coloca um sinal vermelho para os investimentos no transporte público, considerados “de baixa viabilidade” (política?). A única “dica” sobre o assunto começa assim: “ao contrário do que muitas autoridades afirmam, o transporte público sozinho não é capaz de resolver todos os problemas do trânsito”…
No mesmo ítem, a revista ainda cita a pintura de faixas nas ruas (não as de pedestre, claro) e a diminuição do espaço entre as faixas de rolamento para acomodar a frota crescente de automóveis.
Em seguida, a revista sugere um rodízio eficiente, cuja solução está no aluguel de leitores de placa, ao custo de R$1,1 milhão ao ano. Mais fiscais de trânsito são bem-vindos, diz a terceira dica, considerada de “média viabilidade”.
Terrorismo midiático
Mas o bom senso durou pouco. Em seguida, uma sugestão lamentável para favorecer o uso do transporte público: construir garagens nas estações de trem para que o paulistano da periferia deixe o carro e siga de transporte coletivo até o centro. Ainda bem que o governo do Estado entende que a instalação de bicicletários é uma alternativa muito mais barata, eficiente e sustentável de integração dos bairros mais distantes com as regiões centrais.
A reportagem segue: multar mais é a quinta dica. A receita obtida com as multas teria, segundo a revista, um “efeito colateral”: o aumento no caixa da CET. Ué, mas a CET não é o órgão responsável pelo trânsito na capital? Explica-se: desde que a revista acabou, lá pelos anos 90, suas reportagens fazem a defesa incondional do Estado mínimo, da privatização de todos os serviços públicos. Dinheiro nos cofres públicos, para a Veja, é mau sinal.
E o que fazer com o montante arrecadado nas autuações? Construir um sistema cicloviário? Investir em transporte público ou em campanhas de educação? É claro que não. Seg
undo a Veja, o montante deve ser investido no controle do tráfego, alimentando a roda da fortuna: quanto mais automóveis circulando, mais recursos públicos gastos para permitir a circulação de mais automóveis.
Sobre as campanhas de educação, a revista destaca apenas um projeto entre tantos outros existentes e possíveis. Diz ainda que a CET recusou o tal projeto, apresentado há dois anos, e que o órgão gasta R$3 milhões em publicidade em 2006, valor superior aos R$500 mil da inciativa propagandeada.
Duas outras dicas trazem novamente a panacéia tecnológica como salvação para o caos. Pedágio nas regiões centrais, ao custo de R$250 milhões e controle automatizado de tráfego, pela bagatela de R$320 milhões.
“Metropoles do mundo todo perceberam que a única saída é administrar melhor o espaço disponível, investindo em tecnologia”.
O que as grandes metrópoles do mundo descobriram é a necessidade de restringir o espaço devorado pelos carros particulares. Nos EUA, 43% da área das cidades é ocupada pelos automóveis. A última cidade a adotar uma medida de impacto foi Sevilha (Espanha), que pretende proibir o trânsito de veículos particulares em todo o centro histórico.
A revista sugere ainda retirar de circulação os carros em más condições. Uma frase resume o raciocínio: “Esses carros atrapalham o trânsito, contaminam o ar e ainda podem causar acidentes”. É óbvio que vistorias permanentes e a renovação da frota são medidas necessárias, mas vale lembrar que, por princípio, todos os carros atrapalham o trânsito, contaminam o ar e causam acidentes.
O gran finale fica pela restrição aos caminhões, outro absurdo do privilégio individualista propagado pela revista. Ao contrário dos automóveis, os veículos de abastecimento desempenham função pública, alimentando o comércio e os setores de serviços. Para a Veja, os caminhões só devem circular durante a madrugada. Melhor atrapalhar o sono dos vizinhos do que o fluxo de automóveis.
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