No último dia 17 de Fevereiro, começava mais um capítulo decadente na história da mídia brasileira. Em editorial, a folha de São Paulo relativizava os crimes contra a humanidade cometidos pelo Estado entre 1964 e 1985, chamando de “ditabranda” o regime militar que matou, torturou e restringiu liberdades de todos os tipos no Brasil.
Depois de dar sua opinião, digna dos tempos bushianos, o jornal seguiu na ofensiva, partindo para a baixaria e para os ataques pessoais contra dois acadêmicos que contestaram o editorial em carta.
Maria Victoria Benevides, uma das acadêmicas que se levantou contra a relativização do terrorismo de Estado, explica melhor a história em artigo publicado na revista Carta Capital.
No próximo sábado (07), a partir das 10h, acontece uma manifestação em frente à sede do jornal, na R. Barão de Limeira, 425.
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O debate e as ações a respeito do revisionismo histórico da folha de São Paulo levantam uma parte (importante) da questão, mas não a única.
Em episódio simultâneo nos EUA, o magnata da mídia e “publisher” do New York Post Rupert Murdoch pediu recentemente desculpas públicas (na mais bela novilíngua) por uma charge que apresentava um chimpanze morto pela polícia, com a legenda “eles terão que encontrar outro para redigir o próximo plano de estímulo ” (referência ao “Stimulus Bill”, o plano econômico de Obama).
Murdoch disse que “não era para a charge ser racista, mas que, como os leitores interpretaram desta forma”, ele estava pedindo desculpas. Otavio Frias ou mesmo um editorial anônimo poderiam até fazer o mesmo, mas o buraco é muito mais embaixo.
Alguns já ironizam que o fusão da folha com a Veja é iminente, mas a decadência dos dois veículos não é semelhante apenas pela posição política comparável à da Fox News em tempos de eleições ou guerras.
Enquanto a revista semanal caiu em descrédito para uma boa parcela dos “formadores de opinião” depois de um sem-número de “reportagens” que deixariam no chinelo o informativo da Ku Klux Klan, o jornal da Barão de Limeira ainda mantém os mitos de “imparcialidade” e de estar “a serviço do Brasil”.
Os mitos da pluralidade e do jornalismo progressita asssociados à folha de São Paulo estão fundados em seu projeto editorial, que intitula o jornal como “porta-voz” do leitor. Está em sua “carta programa” agir como “advogado de defesa” de uma então apelidada “opinião pública”.
A folha seria “o espaço público” onde se expressariam as mais plurais visões da sociedade brasileira, e o resultado do jornal seria a “soma” destas opiniões, que a folha “faria de tudo para defender”.
Não é uma visão muito distante do que, em teoria, seria a mídia em uma democracia. Mas talvez uma das causas da decadência invisível deste mito e dos episódios extremos (como o editorial) guarde alguma semelhança metafórica com outro processo do grande irmão do norte, o chamado “revolving door”.
O “revolving door” é a porta giratória dos centros de poder dos EUA, em especial o Congresso e as Secretarias (ministérios). Virou marca da adminstração federal estadunidense, impulsionada desde os anos Clinton e tornada regra durante a branda era Bush.
Por esta porta, entram e saem representantes de interesses privados, que ocupam hora um cargo público, hora a diretoria de alguma corporação. O exemplo mais claro e simbólico é Dick Cheney: até o ano em que assumiu a cadeira de vice-Presidente de Bush, Cheney foi CEO da Halliburton (uma das empreiteiras da Guerra, entre as empresas que mais lucrou com os contratos públicos para a “reconstrução” do país bombardeado).
A porta giratória da folha não é necessariamente a dos ministros, banqueiros ou sindicalistas que escrevem suas colunas de opinião e depois (ou antes) passam para o serviço público (cuidando quase sempre de área$ afin$ nos dois setores).
Trata-se mais da auto-referenência sobre a qual gira o próprio conceito de “opinião pública” do jornal.
A folha não é plural nem fala “em nome do Brasil”. Fala de e para uma pequena parcela da população, residente especialmente em algumas regiões e áreas de cidades do Sudeste, com características específicas de cor, renda, meio de transporte e, principalmente, com uma posição bem definida na escala social de um dos países mais desiguais do mundo.
Isso não impediria o jornal de praticar a defesa da pluralidade, nem de manter alguma fidedignidade com as bonitas palavras de seu manual de redação.
Mas talvez se desvie da teoria exatamente no que alguns classificam como razões para ler a folha: seu excesso de colunistas considerados bons e seu péssimo jornalismo, que é extremamente mais “canalha” do que o dos rivais “conservadores”.
As opiniões e debates do “espaço público” da folha talvez guardem um mínimo de pluralidade, inteligência e uma visão interessante, a página de quadrinhos é sem dúvida um espaço subversivo e inspirador e o guia de atividades culturais (paulistanas) é muito melhor do que a concorrência, mas não é isso que faz algo próximo de um “bom jornal”.
Amplitude de pontos de vista, trabalho competente e independência dos jornalistas em relação aos setores comerciais e políticos das redações fazem bem para qualquer veículo.
Na democracia teórica, cabe a mídia ser um espelho da sociedade, refletindo os debates, fatos e questões do interesse público (ou seja, da maioria da população).
A porta giratória e a “ditabranda” da folha talvez escancarem a semelhança da mídia brasileira com uma casa de espelhos de parque de diversões, e pode servir também como mais um alerta para a urgência da chamada “democratização das comunicações”, ou seja, da necessidade de se tirar das mãos de meia dúzia de famílias ou grupos o controle da agenda nacional.
Petição em defesa dos professores e em repúdio à Folha
Ditabranda: o suicídio moral da Folha de São Paulo
Manual de redação da Folha, edição 2009
CMI Brasil
Porque não devemos falar em “ditabranda”
Show jornalismo canalha
Diario gauche
“Ditabranda” para quem?
Folha de S. Paulo, cínica e mentirosa
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