22 textos foram recebidos no curto e movimentado período de final de ano, tempo de vida do Concurso Literário Diários de Bicicleta.
A escolha é sempre uma tarefa árdua. Minhas listas dos 10 melhores sempre têm, pelo menos, 14 coisas. Neste concurso, contei com a ajuda valiosa de dois amigos, que apontaram seus preferidos e justificaram a escolha.
Ao final, 5 grandes textos estavam no páreo, mas apenas dois seriam escolhidos. Não havia divisão entre prosa e poesia, mas o “Soneto em Duas Rodas”, de Felipe Fontes, e o relato cotidiano de altos e baixos em “Nada é complicado para quem sabe voar”, de André Gravatá, além de bem escritos, resgatam sensações ímpares da experiência de viver sobre duas rodas e nenhum motor.
Cada um vai ganhar um exemplar do livro Diários de Bicicleta, de David Byrne.
Os textos seguem logo abaixo, com ilustrações magníficas do Cabelo.
arte: igual você
Soneto em duas Rodas – Felipe Fontes
Santo Pedro manda pra todos um recado
que só consegue ouvir quem está molhado.
É pra se ter de ouvido:
“Você tá vivo, menino!”
Chame a chuva pra chinfra; vem a chuva,
e o cheiro de chuva em chamas chamusca.
Chove em Quixotes
uma chuva-chicote.
Montados em suas magrelas
(que tratam como donzelas)
encontram-se seres humanos.
Cicloquixotes que chovem sozinhos
enfrentando gigantes-moinhos
voando ligeiro, anjos urbanos.
–
arte: igual você
Nada é complicado para quem sabe voar numa bicicleta – André Gravatá
Lama. Muita lama. É na lama que a gente percebe que o chão não é o limite. Em Embu das Artes, cidade localizada no estado de São Paulo, é fácil encontrar intermináveis campos batidos de terra para caminhar, jogar bola e às vezes andar de bicicleta. Nada melhor do que arriscar andar num desses campos um dia depois de uma chuva. E melhor: fazer isso ainda aprendendo a pedalar.
Quedas? Inevitáveis. Como é mais uma daquelas cidades pequenas, com pouco mais de duzentos mil habitantes e uma aura de vila, com os moradores acordando pela manhã e se encostando à janela para olhar a paisagem, indo comprar pão na padaria do Seu João, as pessoas não paravam de me observar, certamente torcendo para eu me atolar.
Demora um pouco e aparecem outros ciclistas, estes na rua, nem de longe imaginando se aventurar na terra vermelha. Enquanto pedalo, moradores passam e dizem “Bom dia!”, “Cuidado aí”, e eu continuo margeando o perímetro do campo com a minha magrela, às vezes comendo um pouco de terra, em vezes que me deixavam ainda com mais vontade de continuar pedalando ali, onde realmente me sentia em contato com a Terra com T maiúsculo.
Já todo sujo, depois de alguns tombos e arranhões, decidi subir uma ladeira, de asfalto, próxima ao campo. Subir uma ladeira é algo normal quando a ladeira é apenas uma ladeira. Mas quando a ladeira é quase uma linha de 90° encontrando o chão, o desafio exige um pouco mais de esforço. Claro que estou exagerando, porque ladeira nenhuma é perpendicular ao solo, mas é inegável que algumas ladeiras foram feitas para escalar e não para subir pedalando.
Suei. Só de lembrar já dá vontade de ir me hidratar. Suei, subi. Então, veio a melhor parte, que só de lembrar já dá vontade de reviver. Quando você desce uma ladeira dessas, dá a impressão de que está descontrolado, o vento passa por você – ainda mais aquele vento pós-dia-de-chuva, que tem uma umidade acalentadora, doce – como se você estivesse dançando no ar. Nunca voei, pelo menos não até hoje, mas sinto que é como voar. Nessas horas a gente sente um frio na barriga, na mente, na boca, nas pernas, nos pedais, que se fundem a nós na velocidade da descida. É como se a bicicleta e o meu corpo fossem um só, meio que estamos em cima do limiar que separa a vida e a morte, e não no sentido de perigo, mas no de ir além de si mesmo, de testar limites.
Pode parecer exagero, mas descer essa ladeira foi para mim uma metáfora da vida. A gente nasce e tudo passa tão rápido, é como se subir a ladeira fosse nossa infância de crianças ingênuas que nem sabem mexer nas marchas. A visão do topo da ladeira, quase uma montanha, corresponde àquela época na qual estamos descobrindo o mundo na sua imensidão e a gente aprende que nunca aprendemos o bastante diante da enormidade de tudo que se tem para aprender… Enfim, daí vem a descida, é a adolescência, efêmera, intensa na sua fugacidade. Nela, a bicicleta deixa de ser bicicleta e passa a ser nós mesmos, a gente se funde com tudo ao nosso redor, é um Nirvana, uma transcendência, uma pequena morte, quase um orgasmo a céu aberto.
Então a velocidade diminui, e tentamos continuar sentindo a brisa que acabou de nos envolver por inteiros. É a vida adulta, na qual na maioria das vezes tentamos estender as loucuras juvenis. E daí seguimos pedalando, pelas calçadas, olhando o mundo de uma forma diferente, afinal, a vista lá de cima nos dá uma perspectiva bem mais ampla. E o melhor de tudo é que, com um pouco de esforço, podemos voltar na ladeira a hora em que quisermos e sentir a plenitude da vida levada nos pedais.
Depois disso, nem lama, nem tombo, nem tempo nos incomoda. Seja em Embu das Artes ou na China, para quem sabe voar numa bicicleta nada é complicado.
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