… e de repente a mídia corporativa criou o hype do trânsito.
Uma profusão de matérias impressas e reportagens televisivas tomou de assalto os veículos de grande tiragem ou audiência.
A imagem acima é o ciclo do hype, termo cunhado por uma analista estadunidense sobre o frisson gerado por novas tecnologias e seu real impacto na realidade.
Hype é o efêmero, o passageiro, a última moda, aquilo que espanta ou seduz as massas vidiotizadas, passíveis de manipulações, fanatismos e reações psicopáticas frente a cada nova imagem chocante apresentada pela tele-tela.
A Sociedade do Espetáculo, texto e vídeo de Guy Debord, expõe com precisão filosófica (sic) as (im)possiblidades de superação. Farenheit 451 é outra referência (menos densa que a primeira), dentre tantas outras.
Ok, o “caos no trânsito” é real e se acentua a cada 1,8 minutos – tempo que leva para que um novo veículo motorizado venha roubar espaço público nas ruas de São Paulo.
Mas será que ele começou em março 2008? Onde estão suas raízes? Por quais caminhos passam as soluções? Qual o papel da mídia nisso tudo? E o poder público, o que fez e o que pode fazer? E o cidadão comum, qual a sua contribuição? Em grande parte das matérias, a análise é rasa e sensacionalista. Algumas poucas exceções aqui e acolá.
“Mais e melhor transporte público”, “só a tecnologia salva: com os chips veiculares, tudo se resolve”, “pedágio urbano”, “restrição de estacionamento para dar vazão aos 800 carros que entram em circulação por dia”… Obviedades e soluções miraculosas, misturados com um pouco de terrorismo midiático é o que vende revista ou mantém a população entretida antes ou depois da novela.
“Especialistas” e mais “especialistas” dão suas sábias opiniões (e aproveitam para vender seu peixe, fazendo o marketing pessoal ou da sua empresa de consultoria). Políticos e técnicos se defendem do ataque midiático, anunciam “planos”, prometem o caos ou a salvação.
Todos andam de carro (salvo, novamente, algumas poucas exceções).
Como todo hype, a pauta única não surgiu a partir de uma observação consistente e contínua da realidade, mas sim de algo “espetacular”: cinco números, cinco recordes consecutivos de congestionamento bastaram para colocar na ordem do dia o “caos do trânsito”.
A insustentabilidade do modelo de transporte baseado no automóvel não começou com uma reportagem de tevê ou com uma estatística da CET. Ela foi forjada ao longo das últimas cinco décadas, com a total e única prioridade ao automóvel sobre todas as demais formas de mobilidade urbana, sustentados pela conivência social e por interesses econômicos bastante óbvios.
Onde estava a mídia ao longo desse tempo? E os políticos, para onde estava voltada sua atenção, onde investiam o dinheiro público? E o cidadão comum, que tipo de político elegeu, quais políticas de mobilidade defende e quais os seus hábitos de locomoção?
O “caos do trânsito” é cotidiano e bastante antigo. Afeta não apenas as classes médias detentoras de automóveis, mas também (e principalmente) pedestres, ciclistas e passageiros de ônibus. Afeta a todos que vivem na cidade, pois gera agressividade, poluição, barulho, degradação do espaço público, desperdício de recursos, degradação da qualidade de vida.
A bomba relógio não explodiu nem deve explodir, pois o homem cordial encontra-se resignado: mesmo passando 6 horas por dia dentro de um ônibus, tendo usurpadas suas calçadas e faixas de pedestre, convivendo com barulho e poluição, ainda sonha em ter um carro e continua achando que político bom é o que constrói avenidas. Afinal é só ligar a televisão, abrir uma revista ou um jornal para ser bombardeado por sonhos de liberdade, poder e status vendidos em 48 prestações.
Ainda vai piorar muito para começar a melhorar. Primeiro, é preciso passar pelo hype e garantir que outro não seja colocado em seu lugar. A discussão deve ser permanente e cada vez mais profunda.
Não há mudança se não expandirmos o olhar para além do pára-brisa. Pedestres, cadeirantes, ciclistas, passageiros de ônibus, trens e metrôs não são bichos exóticos que não conseguiram comprar um carro. São a maioria da população que, por opção ou falta de, ainda não embarcou na bolha de quatro (ou duas) rodas e um motor.
A lógica da escravidão motorizada é destrutiva, segregacionista e especulativa por natureza.
É preciso contestar o automóvel, e não buscar formas de perpetuá-lo resolvendo o “problema do trânsito”.
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