Minha estadia em Buenos Aires durou pouco mais de 48 horas, metade das quais passadas em leitos de hospital, ambulâncias, cadeiras de rodas e camas de hotel. De volta ao Brasil, diagnóstico confirmado: fratura oblíqua da tíbia esquerda, sete pinos instalados e três ou quatro meses de molho até começar o retorno a uma vida “normal”.
Em São Paulo, recuperar-se de uma fratura deste tipo significa passar boa parte do tempo dentro de casa ou, no máximo, fazer alguns deslocamentos de automóvel até a porta do local a ser visitado. Em caso de desobediência, a chance de uma nova queda, um atropelamento ou mesmo de não conseguir chegar até o destino é grande.
Buenos Aires é uma cidade de arquitetura racional. Prédios de poucos andares cuja fachada dá direto para a rua, quase todos com varandas, quase nenhum com quadras, piscinas, playgrounds ou bosques particulares que desperdiçam o espaço urbano e espalham a cidade.
Nas ruas largas, as calçadas também são espaçosas e geralmente tem cinco metros de largura ou mais. A capital argentina tem centenas de praças e parques, cheios de bancos, gramados, áreas verdes, monumentos e brinquedos para crianças.
Taxis baratos (e velhos) circulam por toda a cidade, que foi também a primeira da América do Sul a construir uma linha de metrô.
Em uma recente viagem ao Chile, fiquei impressionado com a quantidade e com a qualidade dos espaços públicos de Santiago: todos bem cuidados e cheios de gente.
O chileno Claudio, do Arriba e’la Chancha, ficou surpreso com a minha admiração e retrucou: “Você está enganado: aqui as classes altas estão se encastelando em condomínios fechados, fugindo do centro, criando distâncias e abandonando a cidade, estabelecendo um clima de segregação e medo. Espaços públicos abundantes, bem cuidados e cheios de gente você vai encontrar em Buenos Aires”.
Não tive tempo de comprovar se as centenas de praças e parques porteños eram mais ou menos utilizados que os de Santiago. À primeira vista, o empate seria um bom resultado e certamente as duas cidades emplacariam uma vitória estratosférica sobre a urbe paulistana.
A diferença mais clara e visível entre Santiago e Buenos Aires diz respeito a outro aspecto: enquanto o Chile conseguiu manter bons níveis de educação, economia e qualidade de vida, a Argentina foi o “hermano de sudamérica” que mergulhou com mais violência na crise do modelo neoliberal durante a década de 90, sofrendo até hoje as consequências do empobrecimento profundo de sua população.
A Argentina foi o primeiro país da América do Sul a adotar as recomendações do Consenso de Washington, a cartilha neoliberal distribuída aos países pobres por organismos internacionais como FMI e Banco Mundial, que previa um modelo socioeconômico baseado na desregulamentação dos mercados, na contenção dos investimentos públicos e na privatização.
A Argentina foi o aluno mais exemplar desta cartilha no continente sul-americano. Vendeu todo seu patrimônio para as corporações transnacionais, desmantelou setores estratégicos da economia e da sociedade e, depois de séculos gozando de uma prosperidade ímpar entre os vizinhos, terminou o milênio com uma mão na frente e a outra atrás.
O país que tinha uma qualidade de vida comparável às grandes metrópoles europeias hoje importa boa parte de seus produtos e sofre com mazelas sociais bem conhecidas no grande irmão do sul: péssimas condições dos serviços públicos, desemprego, miséria e violência se tornaram parte do cotidiano porteño.
Aparentemente, a consciência política de um país bem educado ainda permanece viva. Buenos Aires é um grande mural ao ar livre: frases e mais frases grafitadas em todos os cantos reivindicam, denunciam, despertam e inspiram e mobilizam.
Mesmo assim, o buraco em que se meteu o país a partir da dupla Menem-Cavallo é profundo demais para ser resolvido em uma década. Como disse o taxista que nos levou ao aeroporto: miséria, pobreza e violência são questões cujo tempo é medido em gerações.
Minha tíbia foi quebrada em uma tentativa de roubo. Pedalávamos na ciclvoia da Av. Libertador e, logo depois de tirar a foto acima, dois garotos bloquearam a passagem. Parei a bicicleta e coloquei os pés no chão quando um deles puxou a câmera fotográfica que estava na minha cintura.
Fiz a bobagem de dar uns tapas na mão do garoto. A máquina caiu no chão e o outro moleque deu um puxão na minha bolsa, que estava cruzada no peito. Com o corpo virado e a perna de apoio torcida, caí no chão, com a bicicleta entre as pernas. Não levantei mais.
Hospital, hotel, aeroporto, Brasil, médico, hospital, cirurgia, recuperação.
Buenos Aires é um bom exemplo de que o relevo de uma cidade pouco tem a ver com o uso de bicicletas. A capital argentina é absolutamente plana, mas nem por isso o número de ciclistas é significativo.
As magrelas existem, claro, como em qualquer lugar do planeta. Mas a impressão é de não existirem em número tão visível como em São Paulo ou Rio de Janeiro.
A infra-estrutura cicloviária ainda é pequena e desconexa. Assim como a capital paulista, a cidade parece ter vivido alguns espamos ao longo das últimas décadas, quando algumas ciclovias e ciclofaixas foram construídas aqui e acolá, algumas boas, outras nem tanto.
Buenos Aires segue de costas para as bicicletas. O melhor exemplo disso talvez seja Puerto Madero. Na região revitalizada, cheia de prédios envidraçados e espigões modernos, uma bela esplanada com cafés e restaurantes margeia o Rio da Prata.
Surpreendentemente, a área livre de carros às margens do rio é proibida para ciclistas, que são obrigados a trafegar junto com os carros na rua paralela, uma via sem graça e coberta pela sombra dos prédios.
O passeio de bicicleta em Buenos Aires durou toda a manhã de sábado. Circulamos em avenidas centrais e ruas transversais da mesma maneira que fazemos em São Paulo: na rua, e não em uma ciclovia. Era sábado, não fomos ameaçados por veículos motorizados em nenhuma parte do trajeto.
Na Avenida Libertador, uma via com várias pistas de alta velocidade, compartilhamos a pistacom ônibus barulhentos e velozes (lembrança imediata de São Paulo) até chegarmos à ciclovia que nos levaria ao almoço no bairro da Recoleta.
A faixa para bicicletas é relativamente bem feita, mas instalada às margens da linha do trem, bem longe de qualquer calçada ocupada por pedestres, comércio ou “vida” (lembrança imediata de São Paulo). Duzentos metros de ciclovia depois, paramos para tirar foto de um sinal exclusivo de bicicletas.
O primeiro clique fracassou: o sinal fica aberto cinco segundos para os ciclistas e três minutos para os carros (lembrança imediata de São Paulo). Quando apertei o botão da câmera, o verde já tinha se tornado vermelho. Mais uma tentativa e finalmente a foto desejada, com a luz verde. Dois ciclos de farol na ciclovia foram suficientes para atrair a atenção dos dois assaltantes e o resto da história está no começo do texto.
Em países onde a violência urbana e suas causas mais frequentes não são questões resolvidas, estruturas cicloviárias construídas de maneira esporádica, desconexa, sem integração com o resto da cidade e “no cantinho pra não atrapalhar ninguém” tendem a se tornar os locais mais perigosos para os ciclistas.
Qualquer malandro de Buenos Aires sabe que naquele ponto da Av. Libertador – e não na rua paralela, que não tem ciclovia – passam bicicletas caras, turistas distraídos, celulares modernos, ipods e cameras fotográficas.
A inclusão da bicicleta no espaço urbano tem um alto poder transformador, mas a construção de ciclovias em locais inóspitos, além de não resolver sozinha as mazelas de uma sociedade, pode dificultar ainda mais a vida do ciclista urbano.