Los (in)visibiles

Poucas horas ou mesmo alguns dias em uma cidade não é tempo suficiente para descobrir quase nada sobre a mesma.

Assim como a irmã paulistana, a massa crítica de Buenos Aires parece reunir o mesmo tipo invisível, “estranho”, mas em número crescente nas ruas.

Olhar para as estruturas oficiais, para as placas de obras ou promessas de campanha, ver duas ou três notícias de jornal ou assistir um par de horas de tevê nos apresentam apenas apenas uma primeira camada da realidade local, que geralmente não condiz com as múltiplas realidades de qualquer cidade ou povo.

“Buenos Aires segue de costas para as bicicletas” significa apenas que o status quo local ainda não dá muita bola nem espaço para as necessidades e vozes de quem busca alternativas.

Exceto pela ausência do hype, que estampa bicicletas em santinhos de candidatos, minutos editados de televisão ou anúncios de qualquercoisa em qualquercanto, o ciclismo urbano de Buenos Aires é bem parecido com o de São Paulo. São poucos e invisíveis, porém bravos, criativos e festivos os ciclistas da massa crítica porteña. E se a invisibilidade soa maior no vizinho, talvez seja apenas porque a cidade ainda não viva o colapso sufocante, porém lucrativo, do enxame físico e mental de automóveis.

O vídeo tem cheiro daqueles momentos divertidos da História, aquelas brechas de oportunidades e caminhos onde fagulhas anônimas e pulsantes inspiram sonhos e transformações que o status quo geralmente não será capaz de atender, sem antes fagocitar a novidade e regogita-la embalada para consumo. Etiquetado e rotulado, o Novo geralmente não vai muito além do mesmo, podendo até se constituir em nova tirania, esquizofrenia ou fonte de exploração.

Na disputa pela alteração do status quo, trabalho, sabedoria, criatividade, tolerância e acaso podem jogar a favor. Bons ares, boa sorte.

Buenos Aires, mala suerte (ou “Ciclovias são perigosas”)

Minha estadia em Buenos Aires durou pouco mais de 48 horas, metade das quais passadas em leitos de hospital, ambulâncias, cadeiras de rodas e camas de hotel. De volta ao Brasil, diagnóstico confirmado: fratura oblíqua da tíbia esquerda, sete pinos instalados e três ou quatro meses de molho até começar o retorno a uma vida “normal”.

Em São Paulo, recuperar-se de uma fratura deste tipo significa passar boa parte do tempo dentro de casa ou, no máximo, fazer alguns deslocamentos de automóvel até a porta do local a ser visitado. Em caso de desobediência,  a chance de uma nova queda, um atropelamento ou mesmo de não conseguir chegar até o destino é grande.

Buenos Aires é uma cidade de arquitetura racional. Prédios de poucos andares cuja fachada dá direto para a rua, quase todos com varandas, quase nenhum com quadras, piscinas, playgrounds ou bosques particulares que desperdiçam o espaço urbano e espalham a cidade.

Nas ruas largas, as calçadas também são espaçosas e geralmente tem cinco metros de largura ou mais. A capital argentina tem centenas de praças e parques, cheios de bancos, gramados, áreas verdes, monumentos e brinquedos para crianças.

Taxis baratos (e velhos) circulam por toda a cidade, que foi também a primeira da América do Sul a construir uma linha de metrô.

Em uma recente viagem ao Chile, fiquei impressionado com a quantidade e com a qualidade dos espaços públicos de Santiago: todos bem cuidados e cheios de gente.

O chileno Claudio, do Arriba e’la Chancha, ficou surpreso com a minha admiração e retrucou: “Você está enganado: aqui as classes altas estão se encastelando em condomínios fechados, fugindo do centro, criando distâncias e abandonando a cidade, estabelecendo um clima de segregação e medo. Espaços públicos abundantes, bem cuidados e cheios de gente você vai encontrar em Buenos Aires”.

Não tive tempo de comprovar se as centenas de praças e parques porteños eram mais ou menos utilizados que os de Santiago. À primeira vista, o empate seria um bom resultado e certamente as duas cidades emplacariam uma vitória estratosférica sobre a urbe paulistana.

A diferença mais clara e visível entre Santiago e Buenos Aires diz respeito a outro aspecto: enquanto o Chile conseguiu manter bons níveis de educação, economia e qualidade de vida, a Argentina foi o  “hermano de sudamérica” que mergulhou com mais violência na crise do modelo neoliberal durante a década de 90, sofrendo até hoje as consequências do empobrecimento profundo de sua população.

A Argentina foi o primeiro país da América do Sul a adotar as recomendações do Consenso de Washington, a cartilha neoliberal distribuída aos países pobres por organismos internacionais como FMI e Banco Mundial, que previa um modelo socioeconômico baseado na desregulamentação dos mercados, na contenção dos investimentos públicos e na privatização.

A Argentina foi o aluno mais exemplar desta cartilha no continente sul-americano. Vendeu todo seu patrimônio para as corporações transnacionais, desmantelou setores estratégicos da economia e da sociedade e, depois de séculos gozando de uma prosperidade ímpar entre os vizinhos, terminou o milênio com uma mão na frente e a outra atrás.

O país que tinha uma qualidade de vida comparável às grandes metrópoles europeias hoje importa boa parte de seus produtos e sofre com mazelas sociais bem conhecidas no grande irmão do sul: péssimas condições dos serviços públicos, desemprego, miséria e violência se tornaram parte do cotidiano porteño.

Aparentemente, a consciência política de um país bem educado ainda permanece viva. Buenos Aires é um grande mural ao ar livre: frases e mais frases grafitadas em todos os cantos reivindicam, denunciam, despertam e inspiram e mobilizam.

Mesmo assim, o buraco em que se meteu o país a partir da dupla Menem-Cavallo é profundo demais para ser resolvido em uma década. Como disse o taxista que nos levou ao aeroporto: miséria, pobreza e violência são questões cujo tempo é medido em gerações.

Minha tíbia foi quebrada em uma tentativa de roubo. Pedalávamos na ciclvoia da Av. Libertador e, logo depois de tirar a foto acima, dois garotos bloquearam a passagem. Parei a bicicleta e coloquei os pés no chão quando um deles puxou a câmera fotográfica que estava na minha cintura.

Fiz a bobagem de dar uns tapas na mão do garoto. A máquina caiu no chão e o outro moleque deu um puxão na minha bolsa, que estava cruzada no peito. Com o corpo virado e a perna de apoio torcida, caí no chão, com a bicicleta entre as pernas. Não levantei mais.

Hospital, hotel, aeroporto, Brasil, médico, hospital, cirurgia, recuperação.

Buenos Aires é um bom exemplo de que o relevo de uma cidade pouco tem a ver com o uso de bicicletas. A capital argentina é absolutamente plana, mas nem por isso o número de ciclistas é significativo.

As magrelas existem, claro, como em qualquer lugar do planeta. Mas a impressão é de não existirem em número tão visível como em São Paulo ou Rio de Janeiro.

A infra-estrutura cicloviária ainda é pequena e desconexa. Assim como a capital paulista, a cidade parece ter vivido alguns espamos ao longo das últimas décadas, quando algumas ciclovias e ciclofaixas foram construídas aqui e acolá, algumas boas, outras nem tanto.

Buenos Aires segue de costas para as bicicletas. O melhor exemplo disso talvez seja Puerto Madero. Na região revitalizada, cheia de prédios envidraçados e espigões modernos, uma bela esplanada com cafés e restaurantes margeia o Rio da Prata.

Surpreendentemente, a área livre de carros às margens do rio é proibida para ciclistas, que são obrigados a trafegar junto com os carros na rua paralela, uma via sem graça e coberta pela sombra dos prédios.

O passeio de bicicleta em Buenos Aires durou toda a manhã de sábado. Circulamos em avenidas centrais e ruas transversais da mesma maneira que fazemos em São Paulo: na rua, e não em uma ciclovia. Era sábado, não fomos ameaçados por veículos motorizados em nenhuma parte do trajeto.

Na Avenida Libertador, uma via com várias pistas de alta velocidade, compartilhamos a pistacom ônibus barulhentos e velozes (lembrança imediata de São Paulo) até chegarmos à ciclovia que nos levaria ao almoço no bairro da Recoleta.

A faixa para bicicletas é relativamente bem feita, mas instalada às margens da linha do trem, bem longe de qualquer calçada ocupada por pedestres, comércio ou “vida” (lembrança imediata de São Paulo). Duzentos metros de ciclovia depois, paramos para tirar foto de um sinal exclusivo de bicicletas.

O primeiro clique fracassou: o sinal fica aberto cinco segundos para os ciclistas e três minutos para os carros (lembrança imediata de São Paulo). Quando apertei o botão da câmera, o verde já tinha se tornado vermelho. Mais uma tentativa e finalmente a foto desejada, com a luz verde. Dois ciclos de farol na ciclovia foram suficientes para atrair a atenção dos dois assaltantes e o resto da história está no começo do texto.


Em países onde a violência urbana e suas causas mais frequentes não são questões resolvidas, estruturas cicloviárias construídas de maneira esporádica, desconexa, sem integração com o resto da cidade e “no cantinho pra não atrapalhar ninguém” tendem a se tornar os locais mais perigosos para os ciclistas.

Qualquer malandro de Buenos Aires sabe que naquele ponto da Av. Libertador – e não na rua paralela, que não tem ciclovia – passam bicicletas caras, turistas distraídos, celulares modernos, ipods e cameras fotográficas.

A inclusão da bicicleta no espaço urbano tem um alto poder transformador, mas a construção de ciclovias em locais inóspitos, além de não resolver sozinha as mazelas de uma sociedade, pode dificultar ainda mais a vida do ciclista urbano.

Intervalo

*

Explicações, histórias e causos nas próximas postagens.

Argentina 0 x 4 Alemanha

fotos: luddista / tcnbaggins

No dia seguinte…

av. Miguel Estéfano, em frente ao Jardim Botânico

livre iniciativa popular

Brasil 1 X 2 Holanda

fotos: luddista / brunogola

rua dos Pinheiros X r. Mateus Grou

2o Tempo:

desvio de abismo em “ciclovia” da faria lima

Os donos da porra toda

Em dois parágrafos de notícia, informação fundamental sobre os sócios majoritários no governo de $ão Paulo:

“Os atuais acionistas da CCR – as construtoras Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Soares Penido – irão comprar uma fatia de 6% da companhia em poder dos portugueses, por R$ 990 milhões. Dessa forma, passarão a deter juntos 51% do capital da CCR.”

“A CCR é a maior empresa de concessões rodoviárias do Brasil. Administra rodovias como a Presidente Dutra, que liga São Paulo ao Rio, os sistemas Anhanguera-Bandeirantes e Castello Branco-Raposo Tavares (SP) e a Ponte Rio-Niterói, entre outras. Também administra a linha 4 do metrô paulistano e é dona da Controlar, que realiza a inspeção veicular em São Paulo. “

Brasil 3 x 0 Chile


foto: panoptico


foto:
panoptico


foto:
panoptico

foto: bruno gola

A cidade não é isso que está aí, a cidade é outra coisa
Que as ideias voltem a ser perigosas
No meu país é assim

Brasil 0 X 0 Portugal

cc: cabelo

Brasil 3 X 1 Costa do Marfim

fotos: cc coletivo do joaquim

viaduto av. Dr. Hugo Beolchi – Jabaquara

Brasil 2 X 1 Coréia do Norte

ponte cidade universitária / flickr