Los peatones

As cidades do mundo talvez pudessem ser divididas em duas categorias como indicativo de qualidade de vida e civilidade: aquelas onde o pedestre tem preferência nas travessias e aquelas onde os motores e a morte reinam soberanos.

Santiago se encaixa na primeira categoria. Em todas as esquinas, basta colocar o pé na rua e atravessar sem medo. Os carros param, como manda a legislação chilena e também a brasileira.

Boa parte das esquinas têm semáforos específicos para pedestres; nada de entortar a cabeça para olhar as luzes que controlam o tráfego motorizado.

O verde para o pedestre não interrompe o fluxo de veículos que fazem conversões, mas as máquinas devem esperar (e esperam) o término da travessia de quem caminha.

Nos cruzamentos e conversões não-semaforizadas, a preferência de quem anda à pé é absoluta.

Para facilitar a vida de pedestres e cadeirantes, além de reduzir a fúria dos motores, a cidade ainda tem muitas travessias no nível da calçada: é o carro quem sobe, não o pedestre que desce.

Implantar o respeito ao pedestre não exige nada, a não ser uma decisão firme, um “cumpra-se” espalhado aos quatro ventos.

Parcerias com veículos de mídia ajudariam muito, mas tanto o poder público quanto as empresas de comunicação brasileiras continuam a se interessar bem mais em provas de automobilismo, atividades recreativas e outros negócios mais lucrativos do que impedir a morte de pessoas e criar um ambiente urbano mais decente.

Em São Paulo, as iniciativas neste sentido são ridiculamente tímidas. A CET iniciou recentemente mais uma campanha de adestramento de pedestres. Com foco absoluto em não atrapalhar o trânsito, agentes uniformizados levantam estandartes óbvios em travessias semaforizadas avisando que “verde é verde e vermelho é vermelho”.

Vale ressaltar que as condições favoráveis ao pedestre em Santiago são bastante facilitadas pela ausência de veículos com vidros escuros.

Carros com “insul-filme” são raríssimos na cidade. Com isso, motoristas conseguem enxergar pedestres e ciclistas e todos conseguem estabelecer contato visual, aumentando a civilidade nas ruas e reduzindo o clima de “guerra cirúrgica e anônima” que impera em São Paulo.

Dia de los enamorados, día del espacio público

No Chile, 14 de fevereiro é o Dia dos Namorados. Assim como o casal da foto acima, que contemplava a cidade  em um mirante do Cerro San Cristóbal, outros tantos aproveitavam o domingo de sol nas ruas da cidade.

Nas praças sem cercas, nos gramados sem pântanos, nos bancos com encostos, eram muitos os “enamorados” que se somavam às famílias, crianças, jovens, adultos e idosos para simplesmente aproveitar o espaço público que lhes pertence.

Não sou atleta, só ando de bicicleta

Armas

Ladrões dos Andes

Santiago é uma cidade plana, com prédios baixos, casas antigas e uma boa distribução demográfica de sua população. Organizada em 32 comunidades relativamente autônomas, cada bairro tem as sua administração própria, sua rede de serviços, comércio, moradias e equipamentos públicos.

Ao contrário de São Paulo, onde os subprefeitos são nomeados pelo Prefeito (geralmente seguindo apenas os projetos eleitorais individuais de um e de outro, bem como a política do toma-la-da-ca que divide os cargos entre os partidos da base aliada), em Santiago o cidadão elege diretamente o “prefeito” de seu bairro.

Assim como em diversas cidades do mundo, a população também escolhe os representantes (vereadores) de sua região no chamado “voto distrital”, evitando que um candidato da região X seja eleito pela região Y e, consequentemente, aproximando representante e representado.

Ao longo das últimas duas décadas, Santiago começou a perder uma parte de seu maior patrimônio: a Cordilheira dos Andes, que cerca a cidade, está sendo roubada por empreendimentos imobiliários. Não a cordilheira em si, claro, mas a imagem onipresente das montanhas que, até bem pouco tempo, podiam ser vistas de qualquer ponto da cidade.

Talvez aproveitando-se dos efeitos de memória causados pela poluição veicular, que praticamente esconde as montanhas entre os meses de Maio e Agosto, construtores  e especuladores começaram a erguer espigões de vidro e concreto que deixariam os entusiastas da Berrini e Águas Espraiadas com água na boca.

Pouco a pouco, o horizonte começa a ser tomado por guindastes, máquinas e homens trabalhando pela verticalização estúpida da cidade.

Prédios de três ou quatro andares ou casas antigas dão lugar a espigões desnecessários, ostentadores, onipresentes. Aos poucos, a Cordilheira começa a desaparecer.

Um dos primeiros “robocops” a roubar as montanhas é o da foto acima, construído pela Telefónica na época em que o Chile resolveu privatizar seus serviços de telecomunicações.

Como retribuição pela entrega do sistema de telefonia móvel, a empresa esapanhola deixou fincado no horizonte um prédio de vidro que imita um aparelho de telefone celuar. Bom gosto e criatividade capazes de deixar os “parques”, “pátios” e demais enclaves fortificados que hoje adornam as margens do endinheirado e fétido rio Pinheiros no chinelo.

Metrópolis – Rob Carter

Dia de domingo

Santiago, capital do Chile, tem muitas praças e parques. Ao contrário da capital paulista, suas áreas verdes e de convivência são repletas de agradáveis bancos para sentar ou deitar.

Em Santiago, nada de assentos sem encosto, nada de cercas ao redor das praças e nem sinal dos pântanos anti-gente que viraram moda nas áreas verdes paulsitanas.

Santiago tem milhares de confortáveis bancos e centenas de deliciosos gramados para que o cidadão aproveite seus dias ou horas livres no espaço público.

A São Paulo higienista dos pântanos, das cercas ao redor de praças e dos bancos sem encosto é lugar de passagem, é a anti-cidade que expulsa seus cidadãos do espaço público, confinando-os em celas móveis ou imóveis, verdes ou cinzas, pagas ou gratuitas.

fotos – Chile

De que serve um livro sem figuras nem diálogos? *

* Alice no País das Maravilhas, Lewis Carroll

Liberdade? Velocidade? Poder?

Estacionamento do Conjunto Nacional, quinta-feira, 19h22.

Do lado de fora não havia chuva, não havia caminhão quebrado, motoqueiro assassinado, pedestre atropelado “atrapalhando o trânsito”… Apenas carros e mais carros; quase todos com apenas uma pessoa dentro, assim como os cerca de dez veículos enfileirados na saída da garagem.

Sim: em um determinado momento, dois monstroristas pediram socorro através de suas estridentes buzinas. Dentro da garagem…

Aqui pra você

A foto acima foi inspirada pelo site Fuck You and Your H2, uma sublime declaração de repúdio ao Hummer, o automóvel mais boçal e agressivo já inventado pela espécie que decidiu que os polegares opositores servem essencialmente para disparar mísseis, apertar botões e empunhar armas (de fogo ou movidas a combustível).

Hummers são raridade nas ruas brasileiras. Custam caro. Por aqui, o grande sucesso são os monstros coreanos com nomes de cidades americanas (mais baratos, passíveis de um endividamento em prazo maior), quase sempre com vidros anti-gente e apenas uma pessoa dentro.

O Hummer é um veículo de guerra, “adaptado” para promover a guerra no espaço urbano. No vídeo acima, um Humvee “em ação” nas ruas de Bagdá durante a ocupação estadunidense. O Humvee é a versão original das armas de destruição em massa vendidas a qualquer cidadão que possua algumas centenas de milhares de dólares.

Sem limites nem leis, o soldado invasor pilota sua máquina de guerra da mesma maneira que boa parte dos motoristas urbanos gostaria de dirigir, jogando todos os obstáculos para longe, com medo, com pressa ou com qualquer outra desculpa de guerra.

Arrefecer o impulso individualista e destrutivo de uma máquina de guerra transformada em meio de transporte é parte do contrato social estabelecido pelas leis de trânsito. Em lugares onde o pacto que nos permite viver juntos continua colocando o “ser” depois do “ter”, comportamentos semelhantes ao do soldado invasor são frequentes, cotidianos e destrutivos, ainda que praticamente invisíveis aos olhos oficiais.

A cotidiana guerra urbana tem como principais motores a velocidade, o anonimato, a impunidade e a segregação. Tem seus generais encastelados em escritórios corporativos, sua infantaria pronta para morrer em larga escala, sua cavalaria armada com muito desperdício para derrubar rapidamente qualquer um que se oponha e até sua central de inteligência e contra-informação, pronta para sufocar com uma enxurrada de anúncios e notícias “verdes” e de “responsabilidade social” qualquer tentativa de libertação dos territórios ocupados.

O estado de guerra causado pelo domínio do automóvel e de seus soldados apressados é claro e explícito, enfrentado cotidianamente por qualquer um que ouse desertar e enfrentar o mundo do lado de fora da bolha.

A culpa não é da natureza

Segunda manhã de fevereiro na cidade bipolar.

A natureza reage